Epifora na criança
Anatomia funcional da via lacrimal
A lágrima é produzida pelas glândulas lacrimais. A sua produção diária normal é de 10 mililitros. A maior parte da lágrima produzida desloca-se por acção da gravidade ao longo da superfície ocular e acumula-se no fundo de saco conjuntival inferior. A partir dessa localização é espalhada em direcção ascendente, por acção dos movimentos de pestanejo realizados pela pálpebra superior. É desta forma que a superfície externa do globo ocular se mantém impecavelmente humidificada por um filme lacrimal, que em condições normais tem uma espessura homogénea.
Os movimentos de encerramento das pálpebras empurram a lágrima para baixo na direcção do canto interno. Aí existe um espaço triangular chamado lago lacrimal onde a lágrima se acumula. Nos vértices externos desse espaço existem dois orifícios chamados pontos lacrimais; estes orifícios são as extremidades dos canais lacrimais superior e inferior. Por um mecanismo de pressão, a lágrima é aspirada através dos canalículos superior e sobretudo do inferior (80% da lágrima é drenada pelo canalículo inferior) para o saco lacrimal e daí é drenada através do canal lacrimo-nasal para a fossa nasal.
Embriologia
As estruturas precursoras do sistema lacrimal de drenagem estão individualizadas no embrião de 28-30 mm. Estas estruturas são inicialmente cordões sólidos. Posteriormente, durante o seu crescimento, por um mecanismo de reabsorção celular, desenvolvem um espaço no seu interior passando a ter uma estrutura tubular. Este processo de canalização inicia-se no saco lacrimal por volta do quarto mês; depois evolui para a formação dos canalículos e porção superior do canal lacrimo-nasal. Finalmente a canalização do canal lacrimo-nasal progride para baixo até encontrar uma membrana que separa o canal da fossa nasal. O processo de canalização fica completo por volta do sétimo mês de gestação e coincide com a separação das duas pálpebras.
Em cerca de 60% dos recém-nascidos, a membrana que separa a via lacrimal da fossa nasal persiste ao nascimento, mantendo o canal lacrimo-nasal sem comunicação com a fossa nasal. Contudo na grande maioria das vezes, perfura espontaneamente durante o primeiro mês de vida.
Obstrução congénita do canal lacrimo-nasal
É de longe a alteração mais frequente do sistema lacrimal da criança. Ocorre em cerca de 6% das crianças. Em um terço dos casos a obstrução é bilateral.
Resulta quase sempre da não perfuração da membrana que separa o canal lacrimo-nasal do meato inferior da fossa nasal.
Sinais e sintomas
Sinais e sintomas
Caracteristicamente os pais notam a presença de secreção mucosa ou mucopurulenta na conjuntiva ou nas pestanas, durante os primeiros dias ou semanas de vida. A sua presença é mais evidente de manhã, ao acordar, ou após os períodos de sono.
Tipicamente a conjuntiva mantém-se não inflamada, branca, durante os episódios em que existe secreção, o que ajuda a excluir a presença de conjuntivite.
O excesso de lágrima que se acumula no fundo de saco conjuntival, apesar de presente, é habitualmente pouco notado pelos pais. Contudo uma observação atenta permite observar a presença de um olho com um aspecto húmido. Com a ajuda de uma luz, pode verificar-se a presença de um lago ou de um menisco de lágrima na junção do bordo posterior da pálpebra inferior com o globo ocular. Apesar desta humidade, raramente se observa a queda de lágrima para a face. A presença de factores adjuvante que aumentem a secreção lacrimal, como o frio ou o vento podem tornar o lacrimejo mais exuberante.
A pressão sobre o saco lacrimal pode produzir um refluxo de secreção mucosa para a superfície ocular, mas este sinal não é necessário para efectuar o diagnóstico.
Evolução
Mais de 90% dos casos de obstrução do canal lacrimo-nasal resolvem espontaneamente até aos 8-9 meses de idade. Durante este período, habitualmente efectua-se apenas tratamento médico. Quando a obstrução se mantém para além desta idade deve considerar-se a possibilidade de se proceder a uma sondagem da via lacrimal.
Complicações
A complicação mais frequente é a dacriocistite. Consiste numa infecção do saco lacrimal que requer tratamento urgente porque pode evoluir rapidamente para celulite pré-septal, celulite orbitária ou mesmo para uma sepsis.
Tratamento
O tratamento é decidido em função da idade e da gravidade dos sintomas. Habitualmente os pediatras ou os médicos de saúde familiar assumem a responsabilidade de tratar até aos seis meses de idade, sempre que não existam complicações.
Tratamento médico
Neste período o tratamento deve consistir na massagem do saco lacrimal e na aplicação de colírio de antibiótico. Os antibióticos tópicos reduzem o componente infeccioso muitas vezes presente, mas não tem qualquer efeito na obstrução do canal lacrimo-nasal! Na ausência de infecção não é necessária a sua aplicação embora se possam aplicar uma vez por dia. Na presença de secreção purulenta devem ser aplicados várias vezes ao dia.
Como deve ser efectuada a massagem?
A massagem deve iniciar-se com a limpeza do saco lacrimal. Deve efectuar-se pressão sobre saco e fazer deslizar o dedo na direcção ascendente de forma a expulsar do saco lacrimal as secreções mucosas e /ou purulentas. Posteriormente a esta limpeza, o sistema lacrimo-nasal deve ser firmemente massajado no sentido descendente. Esta técnica força o fluído remanescente a fazer pressão sobre a membrana que provoca a obstrução. Esta manobra deve ser repetida três ou quatro vezes e deve ser repetida várias vezes ao longo do dia.
Tratamento cirúrgico
Sondagem da via lacrimal
A decisão de proceder a sondagem da via lacrimal deve ser tomada em função da gravidade da situação, da idade da criança, da ansiedade dos pais e da saúde geral da criança.
Quando ocorrem complicações como a dacriocistite (infecção do saco lacrimal), a sondagem deve ser efectuada logo que os sinais inflamatórios regridam.
Na ausência de complicações, e na ausência de resolução espontânea da obstrução, o momento correcto para efectuar a sondagem é muitas vezes motivo de controvérsia. De um modo geral parece sensato proceder à sua realização, antes ou por volta do ano de idade. Embora não exista unanimidade de opiniões, aparentemente o sucesso da sondagem parece diminuir progressivamente com a idade, quando realizada mais tarde.
Embora possa ser efectuada com anestesia local e com imobilização do bebé, é preferível a sua realização sob anestesia geral ou sob sedação.
Em que consiste a sondagem?
Após dilatar o ponto lacrimal (orifício do canal lacrimal) inferior e/ou superior, introduz-se uma sonda metálica através do respectivo canaliculo até ao saco lacrimal. Roda-se a sonda para obter um trajecto na direcção do canal lacrimo-nasal e empurra-se a sonda até à fossa nasal. Por vezes encontram-se locais de resistência à passagem da sonda (mais frequentemente na porção terminal, onde a obstrução é mais frequente) que cedem com facilidade. Esta manobra deve efectuar-se inicialmente com uma sonda mais fina e depois com sondas de maior calibre. Para finalizar pode fazer-se uma irrigação da via lacrimal com um líquido corado (por ex. Betadine) cuja passagem pode ser testemunhada por aspiração da fossa nasal.
No pós-operatório deve aplicar-se colírio com antibiótico durante uma semana. Embora não seja necessário, alguns Oftalmologistas prescrevem antibiótico sistémico durante alguns dias com o objectivo de prevenir infecções secundárias às manobras efectuadas.
A taxa de sucesso da sondagem anda habitualmente entre os 80 e os 90%. Nos casos de recorrência dos sintomas pode efectuar-se nova sondagem 3 a 6 meses depois da primeira, ou então proceder-se a uma entubação bicanalicular. Esta entubação consiste na introdução de um tubo de silicone em ambos os canais lacrimais que se juntam na fossa nasal onde ficam fixados. Existem também sistemas de entubação de apenas um dos canais (“Monoca”) e sistemas de dilatação do canal lacrimo-nasal no seu ponto de estenose (“LacriCATH”). Nos casos de persistência ou recorrência, e nos casos em que há dacriocistites de repetição o tratamento consiste na dacriocistorrinostomia (DCR).
Outras causas de epifora na criança.
Ausência de pontos lacrimais.
É uma situação rara em que os canais lacrimais não estão patentes, não se exteriorizando no bordo da pálpebra. Por vezes estão obstruídos apenas por uma estrutura membranosa muito fina que é facilmente rompida; outras vezes exige uma intervenção mais complexa para proceder à sua abertura.
Fístula congénita
Consiste num trajecto fistuloso entre o saco lacrimal e a pele, ou entre o canalículo comum (resultante da junção entre o canalículo superior e inferior antes de desaguar no saco lacrimal) e apele. Nestes casos pode observar-se um pequeno orifício na pele com a saída espontânea de lágrima, muco ou pus. Pode necessitar de correcção cirúrgica.
© ILUSTRAÇÕES: ORLANDO POMPEU
Desenvolvido por Sistemas do Futuro